As cangaceiras. No rastro de Maria Bonita, dezenas de mulheres
mudaram de vida ao integrar os famosos bandos do sertão Ana Paula Saraiva de Freitas 1/6/2015
Criminosas. Quando se fala da
participação das mulheres no cangaço, geralmente elas são reduzidas a esta
palavra. Uma imagem que perde de vista os medos, os desejos e as frustrações
que rondaram as cangaceiras nas décadas de 1930 e 1940, e que ignora as razões
que as levaram para essa vida. Enquanto algumas ingressaram nos bandos
voluntariamente, outras foram coagidas e privadas do convívio com seus
familiares.
Embora os motivos fossem
variados, a maioria daquelas que aderiram ao cangaço carregava a ilusão de que
viveria em festa e teria liberdade, sensação alimentada pela vida nômade e
errante daqueles homens. A realidade revelou um cotidiano bem mais complicado:
além dos embates violentos contra forças policiais, muitas vezes os cangaceiros
ficavam mal alimentados, sem água nem lugar para repousar, caminhando
quilômetros sob sol e chuva.
A faixa etária das cangaceiras variava de
14 a 26 anos, e suas origens socioeconômicas eram diversas, incluindo mulheres
de famílias abastadas. Elas viam no cangaço uma oportunidade para romper com os
padrões sociais: naquele grupo poderiam conquistar outros espaços além da
esfera privada do lar e tinham a oportunidade de escolher seus parceiros sem a
interferência dos acordos familiares.
Uma vez integradas aos
bandos, as jovens tinham que se adaptar à nova vida, sem chance para
arrependimento: tentar fugir implicava retaliações tanto por parte de
cangaceiros quanto por parte das volantes, como eram chamados os grupos de
policiais que perseguiam os “bandidos do sertão”. Nesse espaço permeado pela
violência, eram submetidas aos desejos sexuais de seu raptor, sem contato com a
família, sentenciadas à morte em caso de adultério e envolvidas nos confrontos
com forças policiais. Capturadas pelas volantes, apanhavam, eram estupradas e
sofriam diversas humilhações.
No cangaço os papéis sociais eram bem
definidos: ao homem cabia zelar pela segurança e o sustento dos bandos. À
mulher, ser esposa e companheira. Durante a gestação, muitas ficavam
escondidas. Depois do nascimento do bebê, eram obrigadas a retornar ao cangaço
e entregar a criança a amigos.
A convivência entre elas não era
totalmente pacífica. Testemunhos dão conta de que uma queria ser melhor do que
a outra. O status da cangaceira era medido pelos bens que possuía: joias,
vestidos, animais. As qualidades bélicas também estabeleciam diferenças entre
elas. Sérgia Ribeiro da Silva, conhecida como Dadá, tornou-se emblemática por
sua coragem e desempenho com armas nos embates com as volantes. Chegou a
assumir o comando do grupo no momento em que o líder Corisco se encontrava
ferido. Mas o prestígio feminino acabava sempre associado ao lugar ocupado pelo
companheiro na hierarquia dos grupos.
Maria Bonita (Maria Gomes de
Oliveira), famosa companheira de Lampião, foi a primeira figura feminina a
ingressar no cangaço, em meados de 1930. A partir daí, mais de 30 mulheres
participaram da vida nos bandos. A Bahia foi o estado que forneceu maior número
de moças ao banditismo do sertão nordestino, seguida por Sergipe, Alagoas e
Pernambuco.
As andanças dos cangaceiros
repercutiam na imprensa, e a presença feminina era mencionada de forma genérica
e depreciativa. Nos jornais O Estado de São Paulo e Correio de Manhã, aquelas
mulheres eram chamadas de bandoleiras, megeras e amantes. Eram estereotipadas
como masculinizadas, belicosas e criminosas, além de serem tratadas como
objetos de satisfação sexual.
A imagem apresentada pelos jornais,
porém, difere daquelas que o fotógrafo sírio-libanês Benjamin Abrahão Boto
produziu na década de 1930. Suas fotografias mostram como as cangaceiras
pretendiam ser lembradas: realçam sua feminilidade, evidenciam cuidados com o
corpo, a aparência e a postura, destacam a beleza dos trajes e o apreço por
joias. Algumas se faziam retratar com jornais e revistas da época, sinalizando
o desejo de serem identificadas como mulheres letradas. Essas preocupações
ficam explícitas nas fotos em que algumas – como Maria Bonita – reproduziram a
postura e o gestual das mulheres da elite rural e urbana, como se estivessem
posando em estúdios consagrados.
A maioria dos folhetos de cordel
reforça esse aspecto da participação feminina no cangaço. Os versos destacam a
preocupação das cangaceiras com a beleza, o amor e a cumplicidade dedicados às
relações afetivas, além da coragem nos embates. Nesse tipo de literatura o
perfil feminino é recriado a partir de uma perspectiva mítica, envolvendo um
misto de heroína e de bandida.
As práticas e as representações
das mulheres naquele universo da caatinga foram variadas, e elas não tinham um
perfil único. Quando o cangaço chegou ao fim, cada uma teve de reconstruir sua
vida conforme os parâmetros sociais vigentes. Do cotidiano duro e arriscado das
andanças pelo sertão, as ex-cangaceiras largaram as armas e a fama de
criminosas para encarar outros papéis: mães, donas de casa e, em alguns casos,
trabalhadoras fora do âmbito doméstico.
Ana Paula Saraiva de Freitas é historiadora e autora da
dissertação “A presença feminina no cangaço: práticas e representações
(1930-1940)”, (Unesp, 2005).
Saiba mais:
ARAÚJO, Antonio A. C. de.
Lampião, as Mulheres e o Cangaço. São Paulo: Traço, 1985.
BARROS, Luitgarde O. C. A
derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no Sertão. Rio de Janeiro:
Faperj/Mauad, 2000.
QUEIROZ, Maria Isaura P. de.
História do Cangaço. 2. ed. São Paulo: Global, 1986.
MELLO, Frederico P. de. Guerreiros
do Sol. Violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa
Editora, 2004.